Monday, February 20, 2012

A Soma e o Resto

Comprei e li numa sentada o livro-biografia de FHC, "A Soma e o Resto". Fiquei impressionado com a lucidez e olhar aguçado deste homem de 80 anos que consegue ler o mundo com mais acuidade que a maioria dos mais jovens. Militontos e intolerantes sempre dirão que ele é o homem da introdução do neoliberalismo no Brasil (o que não é verdade, basta ler a agenda real do neoliberalismo) . O que me irrita nesta intolerância partidária é o jogo mesquinho, que depõe contra a inteligência e a abertura de horizontes. Militontos querem justificativas para carregar bandeiras, para travar embates na fronteira da violência, de resolver diferenças e ambições (muitas delas de caráter pessoal) vestindo com a roupagem de uma pretensa politização. Como agora, quando o governo federal dá a guinada para as privatizações e o debate passa a ser exercício de exegese (privatização ou concessão?), quando o fato é o controle estatal sobre os serviços públicos. Disputa partidária a parte, FHC foi um intelectual dos mais influentes para minha geração e um dos melhores representantes da vertente sociologia militante, aquela que se engajou na redemocratização do país. Embora eu sempre tenha alimentado reservas pelo pedantismo que lhe é peculiar (e a fome de vencer, mais que disputar), reconheço que vários estudos que ele produziu marcaram profundamente. Até os mais singelos, como a diferenciação entre autoritarismo e totalitarismo e uma coletânea (que não me recordo o título) que analisava as estruturas de poder em vários países, incluindo URSS e Cuba (algo totalmente ignorado pelos analistas políticos brasileiros, possivelmente até hoje).
Neste livro que acabo de ler, FHC apenas falou. Uma longa entrevista, de 10 horas de duração registrada e trabalhada por Miguel Darcy. O tom coloquial atrai, embora o pedantismo que ele tenta superar permaneça por vezes.
Destaquei algumas passagens, as que achei mais interessantes:

Sobre a Primavera Árabe (ou revoltas no mundo árabe)
A liberdade não foi dada pelo Estado. Ela foi dada pelas novas tecnologias. Governos autoritários, como no Egito e na Tunísia, foram derrubados.

Sobre os segmentos sociais inovadores no Brasil
Uma grande força de propulsão deste novo Brasil está nos setores populares e médios que escapam do clientelismo estatal, que têm independência para criticar o que há de velho nas bases políticas do governo e em muito de suas práticas.

Transformação por acumulação
O que se fez não se perde, o que eu fiz não se perdeu, o que o Lula fez não será perdido. Será provavelmente ampliado. Esse processo de transformação por acumulação faz com que, de repente, a sociedade mude de patamar. Passamos imperceptivelmente a uma nova etapa, em que conquistas que exigiram muito esforço passam a ser vistas como naturais e novas demandas aparecem.

O divórcio entre sociedade e política
 De alguma maneira as instituições políticas da democracia representativa e do capitalismo financeiro não expressam mais as realidades emergentes das sociedades. Esse é o núcleo da crise generalizada pela qual passam os partidos políticos de todos os matizes, bem como os sistemas de representação. Não é só no Brasil, que há um divórcio crescente entre sociedade e política. A desmoralização é geral.

Em decorrência dessas mudanças, não está mais no horizonte a ideia de uma outra forma de organização socioeconômica. Ninguém mais propõe acabar com o mercado, coletivizar os meios de produção. Ninguém mais propõe que o planejamento substitua o mercado, embora se possa e se deva dizer que o mercado, por si só, leva à concentração de renda, a crises. É preciso regulação e, para isso, tem que haver Estado. Os temas em debate mudaram. Embora a discussão sobre o crescimento da economia continue a ter importância, as grandes interrogações dizem respeito à sociedade. Como as pessoas vão se relacionar umas com as outras, como vão reagir diante dos fluxos de novidades que atravessam a sociedade. O que está acontecendo na sociedade?

O resultado de tudo isso é o enfraquecimento de todas as antigas estruturas. Os sindicatos, por exemplo, no passado exprimiam o fortalecimento da classe social que, se não era dominante, lutava para aumentar seu poder na sociedade. Hoje, a filiação aos sindicatos diminui muito e eles passaram a ter força na medida em que se transformam em cartórios. Não representam mais o novo. Falam pelo interesse dos próprios sindicalistas e de uma camada pequena, não pela massa dos que trabalham.

Vivemos numa sociedade em que o importante é compartilhar. Hoje, o grande divertimento dos jovens é contar o que fizeram. (...) É como se a fruição da vida passasse a ser, desse ponto de vista, mais coletiva. A privacidade, que era o bem maior da sociedade dita burguesa, bem-estabelecida, passa a ser uma coisa secundária. O que se quer é o contrário, que os outros saibam o que você está fazendo.

Na verdade os partidos não são capazes de tratar das questões rais que interessam ao dia a dia das pessoas. Estão cada vez mais desligados do mundo real. Isso aumenta o divórcio entre sociedade e política. (...) Se nosso objetivo é suscitar não mobilização nos termos antigos, mas participação nos padrões de hoje, há que entender essa capacidade que as pessoas têm de se conectar e se desconectar. Elas se ligam e se desligam. Não há mais a velha noção de pertencer a um partido. A participação é variável. A mobilização se dá em cada momento, em relação a um determinado tema. O interesse e a vontade de agir são suscitados pela questão em debate. Cada questão sensibiliza determinadas pessoas, e não outras. (...) O descompasso é grande entre o dinamismo da sociedade e a esclerose das estruturas partidárias. A revolução da comunicação chegará algum dia aos partidos?

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